sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Diário de um ano ruim - J. M. Coetzee



No original "Diary of a bad year" de J.M. Coetzee, escritor sul-africano radicado na Austrália e prêmio Nobel de literatura (2003), lançado em 2007. Li a edição da Companhia das Letras, de 2008. capa bonita, diagramação idem (gosto dessa fonte, a electra). A editora está lançando praticamente tudo do autor, que está "na moda" e insere-se nesse movimento editorial de publicação de autores africanos.

Um velho escritor sul-africano radicado na Austrália escreve um livro de ensaios, encomendado por seu editor alemão, com suas polêmicas opiniões sobre assuntos diversos da atualidade. Contrata como digitadora uma vizinha de condomínio: a voluptuosa e pouco ilustrada filipina Anya, casada com um escroto especialista em investimentos. A partir daí o autor entrelaça, em três linhas narrativas distintas, os ensaios (o velho e bom "livro dentro do livro"); as impressões em primeira pessoa do solitário e definhado escritor; e da digitadora Anya.

É sobretudo nessa incomum estrutura que o livro me prendeu. Como as três narrativas não são plenamente correspondentes em duração, frases incompletas nos obrigam a avançar e retroceder páginas, ler e reler passagens, fazer um percurso pessoal no livro. Isso torna a leitura especialmente interessante e divertida. Coetzee conduz com maestria as três linhas que ora se desencontram, ora harmonizam-se, dando uma sensação muito impressionante, como se fossem três linhas melódicas independentes que se encontram em determinados momentos, formando acordes de orquestra.



A relação entre o escritor e a digitadora é cheia de desejo sexual, diferenças, provocações e conflitos; A figura do velho escritor J.C., quase incapacitado de escrever e mover-se, além da sua solitária condição - tanto pessoal como cultural - contrasta com a jovial, fútil e sexual Anya; o condomínio fechado, as Torres Sydenham, também representa bem a solidão, o exílio e o mundo, embora a narrativa se desenvolva muito mais na dimensão escrita, como nas múltiplas leituras efetuadas na história e a relação, baseada na escrita, entre os personagens e as três linhas do enredo. Mas, de fato, o romance se sustenta na sua estrutura tripartida.

O "livro dentro do livro" - artifício já meio batido, mas especialidade de Coetzee - merece algum destaque. "Opiniões Fortes: 12 de setembro de 2005 - 31 de maio de 2006", é um instigante livro de ensaios sobre política, cultura e filosofia. Um índice: Da origem do Estado; Da anarquia; Da democracia; De Maquiavel; Do terrorismo; Dos sistemas de navegação; Da Al-Qaeda; Das universidades; Da baía de Guantánamo; Da vergonha nacional; Da maldição; Da pedofilia; Do corpo; Da matança de animais; Da gripe aviária; Da competição; Do Design Inteligente; De Zenão; Da probabilidade; Do reide; Dos pedidos de desculpas; Do asilo na Austrália; Da vida política na Austrália; Da direita e da esquerda; De Tony Blair; De Harold Pinter; Da música; Do turismo; Do uso do inglês; Da autoridade da ficção; Do pós-vida. Há um segundo "livro no livro", o Segundo Diário, mas seus temas tem relação muito grande com a narrativa, e não quero estragar a surpresa.

Os ensaios conduzem o racionalismo as últimas consequências, muitas vezes morais, e de fato nos fazem pensar. Me marcaram muito suas reflexões políticas, como quando ilustra a origem do Estado através de um filme de Kurosawa (Os sete samurais), e sobre tortura, culpa e reparação, interessantes de aproximar com as ditaduras militares latino-americanas. Acho que ele pesa a mão, propositalmente (é um romance, afinal), quando fala na pedofilia, pois os ensaios desempenham um importante função na construção desse intransigente, cínico e solitário retrato do modelo de intelectual ocidental.

Relacionadas com as narrativas pessoais, emolduram um quadro de desajuste, exílio, fissura, entre os indivíduos e o mundo, entre a cultura letrada e a sociedade, entre nossos sistemas de referência e experiências. Me senti um pouco desolado em vários momentos mas altamente estimulado intelectualmente. Acho ele um escritor muito acadêmico, racional, no sentido de seu método, na construção de muitas camadas narrativas. E ao articular códigos retóricos do ensaio e da literatura, ele talvez apresente um caminho possível para o pensamento acadêmico e suas possibilidades de escrita. E para a aceitação da nossa solidão, cicatrizada em papel.

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